domingo, setembro 26, 2010

O C O R V O





[caption id="" align="aligncenter" width="246" caption="Do Artsy Craftsy - Gravura de Gustave Doré"][/caption]

O C O R V O



Edgar Allan Poe

Foi uma vez: eu refletia, à meia-noite erma e sombria,

a ler doutrinas de outro tempo em curiosíssimos manuais,

e, exausto, quase adormecido, ouvi de súbito um ruído,

tal qual houvesse alguém batido à minha porta, devagar.

“É alguém”, fiquei a murmurar, “que bate à porta, devagar;

sim, é só isso e nada mais”.



Ah! claramente eu o relembro! Era no gélido dezembro

e o fogo, agônico, animava o chão de sombras fantasmais.

Ansiava ver a noite finda, em vão a ler, buscava ainda

algum remédio à amarga, infinda, atroz saudade de Lenora

- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora

e nome aqui já não tem mais.



A seda rubra da cortina arfava em lúgubre surdina,

arrepiando-me e evocando ignotos medos sepulcrais.

De susto, de pávida arritmia, o coração veloz batia

e a sossegá-lo eu repetia: “É um visitante e pede abrigo.

Chegando tarde, algum amigo está a bater e pede abrigo.

É apenas isso e nada mais”.

[caption id="" align="aligncenter" width="237" caption="Do Artsy Craftsy - Gravura de Gustave Doré"][/caption]


Ergui-me após e, calmo enfim, sem hesitar, falei assim:

“Perdoai, senhora, ou meu senhor, se há muito aí fora me esperais;

mas é que estava adormecido e foi tão débil o batido,

que eu mal podia ter ouvido alguém chamar à minha porta,

assim de leve, em hora morta”. Escancarei então a porta:

escuridão, e nada mais.



Sondei a noite erma e tranqüila, olhei-a fundo, a perquiri-la,

sonhando sonhos que ninguém, ninguém ousou sonhar iguais.

Estarrecido de ânsia e medo, ante o negror imoto e quedo,

só um nome ouvi (quase em segredo eu o dizia) e foi: “Lenora!”

E o eco, em voz evocadora, o repetiu também: “Lenora!”

Depois, silêncio e nada mais.


Com a alma em febre, eu novamente entrei no quarto e, de repente,

mais forte o ruído recomeça e repercute nos vitrais.

“É na janela”, penso então. “Por que agitar-me de aflição?

Conserva a calma, coração! É na janela, onde, agourento,

o vento sopra. É só do vento esse rumor surdo e agourento.

É o vento só e nada mais”.



Abro a janela e eis que, em tumulto, a esvoaçar, penetra um vulto:

- é um Corvo hierático e soberbo, egresso de eras ancestrais.

Como um fidalgo passa, augusto, e, sem notar sequer meu susto,

adeja e pousa sobre o busto – uma escultura de Minerva,

bem sobre a porta; e se conserva ali, no busto de Minerva,

empoleirado e nada mais.

[caption id="" align="aligncenter" width="240" caption="Do Artsy Craftsy - Gravura de Gustave Doré"][/caption]


Ao ver da ave austera a soleníssima figura,

desperta em mim um leve riso, a distrair-me de meus ais.

“Sem crista embora, ó Corvo antigo e singular” – então lhe digo –

“não tens pavor. Fala comigo, alma da noite, espectro torvo,

qual é teu nome, ó nobre Corvo, o nome teu no inferno torvo!”

E o Corvo disse: “Nunca mais”.



Maravilhou-me que falasse uma ave rude dessa classe,

misteriosa esfinge negra, a retorquir-me em termos tais;

pois nunca soube de vivente algum, outrora ou no presente,

que igual surpresa experimente: a de encontrar, em sua porta,

uma ave (ou fera, pouco importa), empoleirada em sua porta

e que se chama: “Nunca mais!”.



Diversa coisa não dizia, ali pousada, a ave sombria,

com a alma inteira a se espelhar naquelas sílabas fatais.

Murmuro, então, vendo-a serena e sem mover uma só pena,

enquanto a mágoa me envenena: “Amigos... sempre vão-se embora.

Como a esperança, ao vir a aurora, ELE também há de ir-se embora”.

E disse o Corvo: “Nunca mais”.



Vara o silêncio, com tal nexo, essa resposta que, perplexo,

julgo: “É só isso o que ele diz; duas palavras sempre iguais.

Soube-as de um dono a quem tortura uma implacável desventura

e a quem, repleto de amargura, apenas resta um ritornelo

de seu cantor; do morto anelo, um epitáfio: o ritornelo

de ‘Nunca, nunca, nunca mais’ ”.



Como ainda ó Corvo me mudasse em um sorriso a triste face,

girei então numa poltrona, em frente ao busto, à ave, aos umbrais,

e, mergulhando no coxim, pus-me a inquirir (pois, para mim,

visava a algum secreto fim) que pretendia o antigo Corvo,

com que intenções, horrendo, torvo, esse ominoso e antigo Corvo

grasnava sempre: “Nunca mais”.



Sentindo da ave, incandescente, o olhar queimar-me fixamente,

eu me abismava, absorto e mudo, em deduções conjeturais.

Cismava, a fronte reclinada, a descansar, sobre a almofada

dessa poltrona aveludada em que a luz cai suavemente,

dessa poltrona em que ELA, ausente, à luz que cai suavemente,

já não repousa, ah! nunca mais...



O ar pareceu-me então mais denso e perfumado, qual se incenso

ali descesse a esparzir turibulários celestiais.

“Mísero!”, exclamo. “Enfim teu Deus te dá, mandando os anjos seus

esquecimentos, lá dos céus, para as saudades de Lenora.

Sorve o nepentes. Sorve-o, agora! Esquece, olvida essa Lenora!

E o Corvo disse: “Nunca mais”.



“Profeta!”, brado. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal

que o Tentador lançou do abismo, ou que arrojaram temporais,

e algum naufrágio, a esta maldita e estéril terra, a esta precita

mansão de horror, que o horror habita – imploro, dize-mo, em verdade:

EXISTE um bálsamo em Galaad? Imploro! dize-mo, em verdade!”

E o Corvo disse: “Nunca mais”.



“Profeta!”, exclamo. “Ó ser do mal! Profeta sempre, ave infernal!

Pelo alto céu, por esse Deus que adoram todos os mortais,

Fala se esta alma sob o guante atroz da dor, no Éden distante,

Verá a deusa fulgurante a quem nos céus chamam Lenora.

- essa, mais bela do que a aurora, a quem nos céus chamam Lenora!”

E o Corvo disse: “Nunca mais”.



"Seja isso a nossa despedida!”, ergo-me e grito, alma incendiada.

“Volta de novo à tempestade, aos negros antros infernais!

Nem leve pluma de ti reste aqui, que tal mentira ateste!

Deixa-me só nesse ermo agreste! Alça teu vôo dessa porta!

Retira a garra que me corta o peito e vai-te dessa porta!”

E o Corvo disse: “Nunca mais!”



E lá ficou! Hirto, sombrio, ainda hoje o vejo, horas a fio,

sobre o alvo busto de Minerva, inerte, sempre em meus umbrais.

No seu olhar medonho e enorme o anjo do mal, em sonhos, dorme,

e a luz da lâmpada, disforme, atira ao chão a sua sombra.

Nela, que ondula sobre a alfombra, está minha alma;

e, presa à sombra,não há de erguer-se, ai! nunca mais!

[caption id="" align="aligncenter" width="227" caption="Do Artsy Craftsy - Gravura de Gustave Doré"][/caption]

Poema retirado do blog : Panorama.

2 comentários:

Mirilaine disse...

Muito sombrio. Mas apesar de ser de um passado distante, muitas pessoas se sentem solitárias no meio do mar de gente, pois seus espíritos estão em conflito consigo mesmos e com o mundo em torno, o que pode ser algo perigoso, para cada solitário e para a sociedade que perde sua característica de ser VIDA. viver solitariamente ás vezes para refletir é bom, mas viver sempre só , é triste.

professorhb disse...

Nunca havia visto este poema , por este lado, mas, gostei da sua definição.
Agora quanto ao fato de ser sombrio , isto ele é mesmo.
Acho muito interessante o modo como ele constrói e elabora toda a trama.