Toca a campainha do celular. Olho que horas são. É, apenas, 5h30 da manhã e mal o dia clareou, meu corpo está pesado, resolvo permanecer imóvel por mais alguns minutos enquanto o celular desperta novamente ao som mecânico e chapado de Liszt.
Percebo que é hora de me levantar, caminho a passos lentos em direção a cozinha para preparar o café, me direciono ao banho, meu cão Astolfo, logo se aproxima para ganhar seu afago matinal, minha mãe pede sua xícara de café, quando dou por mim estou me despedindo de todos e me pondo em direção a Faculdade.
Tenho uma caminhada de quinze minutos a minha frente, a manhã está geralmente fria, observo alguns moradores de rua a vasculhar as lixeiras da vizinhança, as mães que esperam as conduções que levarão suas crianças sabe-se lá onde.
Caminho até o fim da quadra, dobro a esquina, a minha frente segue um vozerio misturado ao barulho das máquinas e da construção, que caminham em seu próprio ritmo.
Neste ritmo, enquanto uns trabalham outros tomam café, em uma lanchonete improvisada num carro encostado à beira do caminho, misturado ao pó da rua, e ao movimento dos veículos e pessoas que transitam pelo espaço. Os cães abandonados esperam pelas migalhas ou por qualquer coisa que lhes deem, enquanto que alguns outros rolam e brincam despreocupadamente no mesmo espaço.
Mais um pouco e chego a próxima esquina, estou de frente a Linha Verde, cercada de BR por ambos os lados, onde se situa a Estação Tubo , na qual deverei pegar o ônibus, com o qual devo ir ao centro e de lá a Universidade.
A tal estação, está lotada como de costume, e o mal-estar matinal faz-se presente no ar, o mau humor é notável , assim como a má vontade indisfarçável, nos pés que se movem a passos lentos e quase indeléveis, a multidão de mortos-vivos adentra de forma rotineira o lotação.
É o maior ônibus do planeta! — diz a Prefeitura na televisão. E o mais lotado também! Elemento que não está presente na peça publicitária, que constrói um idílio na propaganda e disfarça e/ou oculta do olhar aquele pedacinho do Tártaro, que a realidade insiste em mostrar. Mas, como uma mentira repetida muitas vezes, vira verdade o lotação segue seu destino.
Assim, ao pegar o ônibus como faço todos os dias, me pus a observar as pessoas como de costume, não que eu faça isso com má intenção ou queira invadir a intimidade alheia, mas, acho muito interessante observar as pessoas de um modo geral.
É fantástico reparar como a vida involuí!
As pessoas andavam as turras, olhar e braços crispados, se acotovelando, empurrando, se agredindo, se ofendendo, sem perdão e sem desculpas. Disputavam cada espaço mínimo, dentro daquele ambiente úmido, nauseabundo e malcheiroso de início da manhã. Pois, a este ponto muitas já vem cansadas de uma noite extenuante e longa de trabalho pesado, e de vigilância constante típicos dos trabalhos que varam a madrugada.
Neste ponto, o coletivo se assemelhava a uma jaula, superlotada. As feras confinadas àquele espaço roçavam-se inquietas, algumas ansiosas, outras nervosas e até algumas excitadas, afinal ainda existe gente que sinta prazer em momentos e lugares muito peculiares, ainda que seja a custa do desconforto do próximo ou próxima.
Via o desejo quase indisfarçável nos olhares, por vezes odiosos ou simplesmente cansados de cada um, em dar vazão ao seu lado animal, a fera adormecida em cada um, que se manifestava nas atitudes inconscientes, mas, que o corpo, os trejeitos e maneirismos, deixavam entrever.
Afinal de contas “O Corpo Fala”! Fala de modo muito sutil o que os milhares de anos de evolução física e social, e que o verniz da civilidade, das boas maneiras, entre tantas coisas tentaram calar, mas, que o inconsciente denuncia.
É que por vezes, nos jornais, revistas e outros meios de comunicação é anunciado como loucura ou frenesi das massas, e na verdade é o inescapável fato de sermos apenas o que somos, animais! Racionais é bem verdade, mas, ainda sim animais!
Neste passo, as paisagens que é aquela poção do visível, a qual nós muito remotamente podemos apreender, sucede-se de forma dinâmica, no vão minúsculo que se forma entre os corpos que disputam espaço dentro do coletivo e a janela, quase sempre fechada.
Minha mente passeia. Por estes dias uma canção não tem saído da minha mente, toca indefinidamente, de tempo em tempo, a qualquer instante e momento. É uma melodia relativamente antiga, velha para alguns e jurássica para outras. Tem uma a sutileza e a rudeza das obras, prédios e ruas da cidade, que por vezes parece estar materializado nos olhos vazios e embotados das pessoas que circulam pelas ruas.
Da solidão e da indiferença que se fazem presente em todos os lugares e momentos, afinal “Uma multidão não é companhia e nem tão pouco rostos familiares fazem amigos”, neste panorama as pessoas caminham impassíveis para rumo ignorado.
Por vezes, nos muitos ônibus que apanho diariamente (como neste caso), me detenho a observar as pessoas que partilham aquele espaço comigo, vejo a mãe que cuida do filho, a velha senhora que reclama da vida ou simplesmente faz seu tricô, o sono do trabalhador que se acha cansado pela noite não dormida e os adolescentes barulhentos no fundo do coletivo, mas, apesar de todo este movimento o silêncio reina solene. O silêncio que reina é um silêncio diferente, algo perturbante, já que como na canção:
“Pessoas conversando sem falar.
Pessoas ouvindo sem escutar
Pessoas escrevendo canções
Que vozes jamais compartilharam
Ninguém desafiou
Perturbar o som do silêncio”.
Havia algo de quase melancólico neste silêncio, que é o silêncio do individualismo, que talvez seja o grande mal que se espalha e corroê os espíritos, tornando-os envelhecidos e passivos. Não obstante a este silêncio, ainda existe o espírito da juventude que se explicita na algazarra dos jovem , que inconscientemente se apercebem deste estado de coisas . E que quando calados, respondem ou dialogam, por meio dos muros, mensagem sem nexo nas paredes dos ônibus e terminais e que de uma forma ou de outra buscam romper com este estado de coisas, embora, estes gritos em meio ao silêncio, muitas vezes não tenham eco, eles fazem-se ouvir rompendo ‘o som do silêncio” que persistem em permanecer.
Neste ínterim, entre a minha casa e o centro, minha mente viaja, milhares de pensamentos se sucedem, alguns loucos e contraditórios, outros sonhadores ou terrivelmente realista, a voz quase fantasmagórica do ônibus avisa:
—Estação central! Desembarque por qualquer uma das cinco portas!- exclama a voz em tom monocórdico.
As pessoas se alvoroçam, e até aquelas de aparência mais plácida logo se agitam em desespero, para deixar aquele recinto, que a estas alturas parece em chamas, tamanha a necessidade de alguns em deixar o ambiente, por outro lado, a confusão se faz quando outros, letárgicos, em seu passo lento e vagaroso, colocam-se entre os desesperados, os cansados e os atrasados , que como eu desejam dar segmento a sua vida.
Em um movimento quase peristáltico, o ônibus é evacuado. Caminho com certa pressa, para variar estou atrasado!
Sigo o meu caminho, na rua corpos estendidos no chão, não; não estão mortos... São apenas, mais vítimas da dura luta quotidiana pela sobrevivência ou “sub-existência”, jazem na sarjeta, inumanos diriam alguns, perigo diriam outros, para mim pessoas que não tiveram sorte na vida, fizeram escolhas erradas em algum momento, ou simplesmente resultado de um contexto social sombrio.
Penso naquilo que sei, e reflito a cerca da sua real utilidade, constato, com certa tristeza, que sou capaz de fazer nada a respeito do quadro que visualizo a minha frente, contemplo silenciosamente o caos. Sinto-me inútil.
No caminho misturam-se o cheiro nauseante de sarjeta, poluição e fritura, dos estabelecimentos da região, uma mulher joga criolina com sabão na calçada em frente ao prédio, e esfrega vigorosamente o espaço a sua frente, mais adiante um mendigo e seu cão sentados junto a porta de uma lanchonete fechada, o animal se recosta em seu companheiro que lê despretensiosamente o jornal que é distribuído gratuitamente nas ruas, diferentes em espécie iguais no abandono.
Neste momento estou quase próximo a esquina da Reitoria, observo rostos conhecidos, alguns cumprimentam, outros blasè.
Observo junto ao pátio alguns colegas jogando bola, outros peteca, em torno do pátio forma-se uma espécie de escadaria, onde outros jovens, com ar de hippie tardio, tomam sol e jogam conversa fora, na minha mente surge a imagem daqueles programas sobre a vida animal, com aquelas colônias de morsas, se espremendo por sobre as pedras, é um momento singular...
Finalmente me dirijo ao elevador, logo em seguida estou no andar desejado, trabalho em mãos, chego sem graça, tentando não fazer alarde, o Professor me cumprimenta com uma certa ironia:
—Boa tarde!- exclama o mestre, com um certo sorriso no canto da boca.
Estou atrasado.
2 comentários:
Muito legal , um retrato de nosso cotidiano.
Ou quase isso! :)
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